15 fevereiro, 2008

kurt schwitters : comMERZbank

(…) passados quarenta anos, Huelsenbeck, embora há muito se tivesse reconciliado com o falecido, ainda lhe deu um pequeno pontapé num dos seus livros, porque simplesmente não suportava a “bourgeois face” de Schwitters. De qualquer modo, esta recusa que Schwitters teve de amargar em Berlin levou-o a abrir o seu próprio “negocio” em Hannover, ao qual baptizou de MERZ, um nome nascido da fragmentação de “commerzbank”. Schwitters era pela arte de forma absoluta e irrestrita, durante 24 horas por dia. O seu génio não tinha nada em comum com a modificação do mundo, dos valores, do presente, passado ou futuro, nada com tudo aquilo que se anunciava em Berlin com alarde. Ele não falava em “MORTE DA ARTE”, "NÃO-ARTE” OU “ANTI-ARTE”. Pelo contrário – cada bilhete de autocarro, cada envelope, papel de embrulhar queijo, anel de charuto, solas de sapatos rasgados, fitas, arames, penas, panos do chão, tudo o que tinha sido deitado fora… tudo era envolvido com amor e reencontrava um lugar de honra na vida, isto é, na sua arte. Mas, em vez de agradecermos a este homem pela felicidade que proporcionava a nós e a toda as coisas desprezadas, pelo humor inesgotável que destilava na composição com bilhetes de autocarro com lixa das unhas, papel de embrulhar queijo, restos de meninas, pelo grande numero de poemas, sentenças, novelas, peças de teatro, nos quais um sentido superior se aliava ao absurdo, unidos ambos numa linguagem imortal, à semelhança do jovem e da jovem que se unem na primavera – ao invés de agradecermos, deixamos que ele, o pintor e poeta alemão, viesse a morrer na miséria na emigração, sem o reconhecimento devido, amparado apenas por uma rapariga inglesa Edith Thomas e um fazendeiro chamado Pierce. Este talvez não seja o lugar onde isto deva ser dito, mas estas informações deverão contribuir para situar Schwitters e a sua obra na perspectiva na qual ele continuará a viver historicamente
Ninguém sabia declamar como ele. É possível que, de acordo com a documentação epistolar de Hausmann, Ursonate de Schwitters se baseie no poema fonético de Hausmann, no “Rfmsbwe”. Mas o que Schwitters fez deste poema, e o modo como o declamou, diferem totalmente de Hausmann. Na composição de Hausmann sentia-se sempre uma agressão sombria e ameaçadora. Quando declamava os seus poemas fonéticos , extraordinariamente interessantes, eles afiguravam-se como formulas de conjuração colérica, como gritos encharcados em suor frio, provenientes dos infernos habitados por demónios torturados. Em Schwitters tudo era livre; tudo era presidido por um espírito no qual reinava a natureza. Nenhum ressentimento, nenhum vestígio de impulsos recalcados. Tudo vinha directamente das profundezas à superfície, sem hesitações, pronto, acabado. Nunca Atena, nascida da cabeça de Zeus, se apresentara assim, com armadura completa. É de ressaltar que tudo o que dizia se caracterizava pelo linguajar típico de Hannover, estando impregnado, portanto, de um dialecto completamente inadequado à linguagem poética. Mas tudo era tão novo, que no fim todos se mostravam dispostos a aceitar o linguajar de Hannover como uma língua universal. As pessoas riam-se dele. Que rissem, mas o importante era que soubessem o motivo porque riam. Nunca havia um momento de tédio, quando Kurchen estava presente. Não importava o que fizesse, as suas acções eram pautadas pela mais absoluta seriedade, até mesmo quando nós as considerávamos uma piada. Esta ambivalência surpreendente continha uma energia incrível. Em cinquenta por cento dos casos, é verdade, ela descarregava-se sob a forma de uma explosão de gargalhadas…
Neste contexto lembro-me da primeira apresentação publica da Ursonate de Schwitters, na casa da senhora Kiepenheuer, em Potsdam, por volta de 1924 ou 1925. Haviam sido convidadas as pessoas “de bem”, o que em Potsdam, o baluarte militar do velho reino prussiano, significava uma grande quantidade de generais reformados e outras personalidades “ilustres”. Com os seus dois metros de altura, Schwitters encontrava-se de pé no pódio, e começou a declamar a Ursonate com sibilos, berros e cacarejos, diante de um público totalmente inexperiente em matéria de modernismo. No início, houve uma consternação geral. Mas após dois minutos o choque dissipou-se. Por mais meio minuto o respeito pela casa decorosa da senhora Kiepenheuer resfriou os protestos. Mas esta reserva apenas contribui para intensificar a tensão interior. Encantado observei como dois generais sentados à minha frente comprimiam os lábios com o maior esforço, a fim de não explodirem numa gargalhada, os seus rostos apoiados sobre colarinhos duros, primeiro ficaram vermelhos, e em seguida adquiriram uma coloração ligeiramente azulada. E então repentinamente, aconteceu algo pelo qual não se podiam responsabilizar: rebentaram de tanto rir, e o publico inteiro, liberto da tensão acumulada, explodiu numa orgia de gargalhadas. As distintas velhas senhoras, os rígidos generais resfolegavam de tanto que riam, batiam com as mãos nas coxas e tinham acessos de tosse. Nada disto perturbou kurtchen. Ele apenas ajustou a sua voz treinada e possante ao volume dez , que passou a dominar as gargalhadas do público, de maneira que estas se transformaram em algo como música de fundo, acompanhando a récita da Ursonate. Era como se ao redor rugisse o mar, contra o qual dois mil anos antes Demóstenes havia erguido a força da sua voz. O tufão acalmou-se com a mesma rapidez com que tinha começado. Schwitters concluiu sem incidentes a declamação da sua “ursonate”. O resultado foi fantástico. Dada: kunst und antikunst / hans richter
u . r . s . o . n . a . t . e

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