24 novembro, 2007

Para o compositor americano john cage, Satie foi essencialmente o inventor da música para mobilar e o autor de Vexations, primeira experiências sonoras exclusivamente “baseadas em intervalos de tempo”. Fala disso um pouco como um duplo de si próprio. (…) De qualquer modo cabe-lhe realizar uma musica, quer dizer, uma musica que faça parte dos ruídos ambientes, que os tenha em conta. Suponho-a melodiosa, ela adoçaria o ruído das facas e dos garfos sem os dominar, sem se impor. Mobilaria os silêncios, por vezes penosos, entre os convivas. Poupar-lhes-ia as banalidades habituais Ao mesmo tempo neutralizaria os ruídos da rua que entram no jogo sem discrição. Seria isto responder a uma necessidade. (…) Se se considerarem cronologicamente as obras de Satie (1886-1925), certas peças consecutivas parecem muitas vezes constituir pontos de partida absolutamente novos. Encontrar-se-ão dois trechos tão diferentes que dão a impressão de não terem sido escritos pelo mesmo compositor. Pelo contrário, de tempos a tempos, obras sucessivas são tão semelhantes, tão por vezes quase idênticas, que fazem pensar nas exposições anuais dos pintores e permitem aos musicólogos distinguir períodos de estilo. Os especialistas dedicam-se a fazer análises generalizadas das questões harmónicas, melódicas e rítmicas com o objectivo de mostrar que em Socrate estão presentes todos estes princípios formais, definidos e reunidos de uma maneira homogénea. (como convém a uma obra-prima). Deste ponto de vista de especialista, Pierre Boulez tem razão. As harmonias de Bom Maitre, as suas melodias e ritmos já não têm interesse. Dão prazer àqueles que não têm mais nada com que ocupar o tempo. Perderam o dom de irritar. Na verdade, não se poderia suportar uma execução de Vexations (que na minha opinião, dura vinte e quatro horas: 840 repetições de um trecho de 52 compassos de estrutura repetitiva A, A1; A1, A2; tendo cada A duração de 13), mas para quê pensar nisso? (…) O artista conta: 7, 8, 9, etc. Satie é perfeitamente imprevisível, surgindo sempre do zero: 112, 2, 49, sem etc. A ausência de transição é característica não só entre as obras acabadas, mas nos cortes, pequenos ou grandes, no interior da mesma obra. (…) Não é isto uma questão de vontade, quero dizer, de prestar atenção aos ruídos das facas e dos garfos, aos ruídos da rua, de os deixar entrar? (Ou então chamem a isto fita magnética, musica concreta, musica de mobilar. é a mesma coisa: trabalhar em relação à tonalidade e não apenas em convenções discretamente escolhidas). Porque razão é necessário prestar atenção ao ruído das facas e dos garfos? Satie di-lo. Tem razão. Caso contrario a musica deveria ter muros para se defender, muros que não são só necessitariam constantemente de reparação, mas que, mesmo que fosse apenas para ir buscar agua, era preciso transpor, convidando ao desastre. Trata-se evidentemente de pôr as coisas que nos propúnhamos fazer em relação com as coisas em redor que não faziam parte do que nos haviam proposto fazer. O denominador comum é zero, onde o coração bate (ninguém faz circular o sangue de propósito). Evidentemente “que é uma escola”. Este ponto de partida do zero. (…) Para uma pessoa se interessar por Satie, é preciso começar por estar desisteressada, aceitar que um som é um som e que um homem é um homem, renunciar às ilusões que temos sobre as ideias de ordem, as manifestações de sentimentos e tudo o mais das arengas estéticas que herdamos. Não se trata de saber se Satie é válido. Ele é indispensável John Cage
…numa crónica (telefonema) de 1952: “ era um velho de 70 anos e tinha sido cruelmente abandonado por todos os amigos, quando o encontrei no Quartier Latin. Chamou-se Erik Satie, e talvez venha a ser um dia considerado o maior génio musical do século XX”. Satie nunca chegou aos 70 anos. Morreu com 59, embora devesse parecer muito mais velho quando Oswald o conheceu (entre 1922 e 1925). “Mesmo aos quarenta anos, satie já parecia muito velho”, diz Ornela Volta, responsável por dois itens importantes da bibliográfica satieana – Écrits (1977), contendo os escritos do compositor, e Erik Satie (1979, para a colecção seghers/humor. É também pouco provável que ele venha a ser considerado o maior génio musical do século que produziu Shoenberg, Webern, Stravinski, Cage e Stockhausen. Um século ao qual não pertenceu inteiramente, já que as suas primeiras obras importantes se inscrevem no século anterior. Mas sem duvida pode, hoje, ser visto como um dos génios musicais do século, ainda que continue a suscitar polémicas e a desafiar classificações. Oswald, o amador genial “Viva os Amadores!”, não bradava Satie?), acertou no alvo. E chegou a se antecipar a John Cage, cuja primeira reavaliação de Satie, conferencia proferida por Cage no Black Mountain College, perante um auditório composto, em boa parte, de professores alemães refugiados nos EUA, os quais ouviram escandalizados a proclamação de que Webern e Satie estavam certos e que quem estava errado era Beethoven, cuja influencia tinha sido nefasta para a arte da música. Cage dedicou a Satie, então, nada menos que 24 concertos, que culminaram com a apresentação da peça pré-Dadá (com musica incidental) A Armadilha da Medusa, tendo o arquitecto Buckminster Fuller no papel de Barão Medusa. Numa “universalidade” tão livre como Black Mountain (local do primeiro happening), nada poderia terminar de maneira convencional. Para por um ponto final na querela entre beethovenistas e satieanos, desencadeada pela palestra de Cage, consta que o reitor, Bill Levi, propôs um doelo de Schnizel e crepe suzette e que os ânimos exaltados se aplacaram provisoriamente numa farra pastelonica… É de 1958 a publicação de duas novas importantes defesas de Satie na revista Arts News Annual: “Sobre Erik Satie”, de Cage, e “Erik Satie: Compositor da Escola de Paris”, de Roger Shatuck. Aquele que viria a ser incorporado ao famoso livro Silence (1961). O artigo de Shattuck integrar-se-ia noutro livro, de muita repercussão, The Banquet Years (1958). Entre a conferencia de Black Mountain e estas publicações, paradoxalmente de dois norte-americanos, editou-se em França, em 1952, um alentado numero especial da Revue Musicale, devotado a Satie, sob a organixação de um outro não-francês, o britânico Rollo Meyers. Era o começo da redenção. Em 1952, o catálogo de discos Schwann dava a Satie uma mirrada fatia: Descrições Automáticas, uma Gimnopedie, uma Gnossienne e mais algumas peças para piano, na metade de um LP dividido com Poulenc. Três Peças em Forma de Pêra, num disco ocupado por um concerto Saint-saens (do qual dizia Satie: “ Não: Saint-Saens não é alemão… é só um pouco cabeça dura…”. Parade partilhado com Auric. A Missa Para os Pobres, repartida com as Variações op. 40 de Shoenberg. E – o único LP todo seu – a gravação pioneira de Socrate, sob a regência de René Leibowitz, o ressuscitador da música dodecafonica na década de 40. Só em 1968 Aldo Ciccolini iniciaria a sua “quase integral” em seis discos, que foram pingando aos poucos. Mas, quem é, afinal; Satie, aos olhos de agora? “Não se trata de saber se Satie é relevante, ele é indispensável”, diz Cage. O arco da invenção satieana é incomum. Vai do século XIX ao XX, do impressionismo ao dadaísmo, do rosa-cruz ao café-concerto, em suma, de Esotérik (como o chamou Alphonse Allais) a Satierik (como o preferiu chamar Picabia). Arco? Da primeira fase, a mística e precursora (1887-1895) são as Sarabandas, que antecedem às harmonias debussyanas. Outras composições do período (Gymnopedies, Gnossienes) rebelam-se, no seu modalismo/medievalismo dissolvente, da tirania tonal e insinuam noções libertadoras de ritmo e de tempo. Subitamente, o homem transfigura-se. 1900. à noite, nos cabarés de Paris, dedilha valsa ligeira ( Je te veux, tendrement). Riso ou sorriso? Nova mudança. Troca a roupa elegante de veludo e o caquete de boémio pelo fato escuro, o chapéu coco e o colarinho postiço de notário, complementados por indefectível guarda-chuva. O exterior envelhece. Ele rejuvenesce, velhíssimo na aparência heterónimo em pessoa. Enquanto Debussy produz obras-primas impressionistas como a Canção de Bilitis (1897) e os Nocturnos (1899), o riso de Satie começa a florescer em peças curtas e desconcertantes pela simplicidade e pelo tom paródico. Os títulos, antes enigmáticos, agora criticam, em poéticos disparates, a nomenclatura deliquescente de matiz impressionista: Peças Frias (Três Árias pra Fazer Correr e Três Danças de Viés), 1897; Prelúdios Flácidos para um Cão, 1912, Três Valsas Distintas do Afectado Enfadado, 1914, para citar só alguns exemplos. Dada adopta logo esse velho terrível, que com a peça Armadilha de Medusa (1913) já praticava o absurdo com a maior naturalidade. Bale Parade, 1917, será o sucesso do escândalo do ex-esotérico Satierik. Um concerto para maquina de escrever, sirenes e tiros, com jazz e orquestra. Mas Satie tem outras facetas. “Mostrem-me alguma coisa nova. Eu começo tudo outra vez”. Em desportos e Divertimentos (1914), mistura textos e notas musicais em partituras caligrafadas em preto e vermelho, associando música, poesia e desenho, numa inédita operação intersimiotica, que a Roger Shattuck evoca, simultaneamente, a concisão os haicais e as inovações gráficas de Mallarmé e Apollinaire. Em Socrate (1918) ele esconde o riso: sobrepõe-lhe a máscara ascética de um despojamento monocórdico. Mas então era sério? O riso volta na Musica de Mobiliário, em colaboração com milhaud: musica de fundo a ser prenchida pelo publico (“circulem! Falem! Não escutem!”). os últimos anos (1924-1925) mostram-no ainda envolvido com a vanguarda: nos balés Mercure, junto a Picasso, e Relâche (Descanso), ao lado de Picabia; na banda sonora para Entreacto, Rene Clair. Ninguém sabe como seria o Quarteto de Cordas que projectava, quando a morte o colheu – afirma Cage. O riso de Satie escoou para os seus Escritos, que, dispersos ou esquecidos, só recentemente (1977) foram reunidos por Ornella Volta. Peças curtas e fragmentarias (como as suas musicas), tendedo ao aforismo: anotações, pseudo estudos, pseudo conferencias, quase-poemas, desenhos, anúncios-poemas – um material que demanda, como desportos e Divertimentos, reprodução fac-similada pois o design caligráfico é parte integrante da criação . o humor de um musico que incluía nas suas partituras indicações como “sem arabescer com o dedo” ou “como um rouxinol com dor de dentes”, mas que nada tem de meramente humurado, antes humor critico, de que era capaz de escrever, implacável: “Ravel recusa a Legião de Honra, mas toda a sua obra a aceita”, e de dizer: “ não basta recusar a Legião de Honra, o essencial é não merece-la”. Não é de admirar que muitos não saibam o que fazer com Satie, Entre nós, Carpeux – o anti-Oswald, o irudito sem intuição – sentencia, na sua idiossincrática e lacunosa (Ives nem aparece na edição de 1962!) Nova historia da Musica: “deixou mais anedotário que obra”. Felizmente Décio Pignatari, o Oswald magro da geração de 50, foi certeiro como este, na revista Invenção nº 5 (1967): “Erik Satie realizou no nível semântico-pragmatico o que Webern realizou no sintatico”. O misterioso Acaso que rege a circulação de música erudita por estas bandas brindou-nos com pelo menos dois registros fascinantes de Satie. Um, o LP-Fermara-SFB-294, contendo Parada, sob a regência de Maurice Rosenthal, com todos os ruídos prescritos. Outro, mais recente: o espantoso Erik Satie – As Primeiras Obras para Piano, do holandês Reinbert de Leeuw (Chantecler-Telefunken). Leeuw é, também, o único pianista que gravou Vexations (Vexames), que Satie compôs em 1893 e que consiste nu único motivo, prescrito para ser repetido 840 vezes (para ouvir integralmente a obra ter-se-ia que escutar o disco – editado, pela Telefunken, na Holanda – cerca de cinquenta vezes seguidas). Em 1963, Cage dirigiu, em Nova York, a primeira audição integral da peça, revezando-se com outros pianistas. O concerto durou 18 horas! Não. Não há guarda-chuva contra Satie, “o velhinho-prodígio da música”, como o chamou Noel Arnaud. Entre nós, ele volta a sorrir nas irreverências de Gilberto Mendes, afinal em disco. E positivamente ri nos arranjos populares e nos desarranjos da não-obra de Rogério Duprat e Damiano Cozzella, compositores que – para nossa punição – preferem rir a compor.
Augusto de Campos / SomTres nº17 / maio de 1980

+++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++ _____________Entr'acte (1924) francis picabia + rené clair + erik satie +++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++